Resumo
O presente artigo consiste na análise da emergência de padrões de beleza do corpo masculino, sobretudo no que diz respeito à cor da pele, divulgados na revista Rose, pioneira publicação de nus masculinos a circular no Brasil, entre 1979-1983. Foram selecionadas 27 edições do periódico para a análise e percebeu-se que o tipo físico produzido como atrativo e desejável difere do fabricado no final do século XX e nos dias de hoje. Observou-se, ainda, que modelos de cor preta eram pouco visíveis na revista, o que mobilizou uma discussão sobre uma história da beleza. Essa análise fundamenta-se nos estudos sobre masculinidades e a metodologia foi construída a partir da imbricação entre História e Imprensa.
Palavras-chave:
História da beleza masculina; Corpo; Masculinidade
Abstract
This text analyzes the emergence of beauty standards for the male body, especially about skin color, published in Rose magazine, a pioneering publication of male nudes circulating in Brazil, in the 1970s-80s. 27 editions of the periodical were selected for analysis and it was noticed that the physical type produced as attractive and desirable differs from that made at the end of the 20th century and nowadays. It was also noticed that black models were barely visible in the magazine, which sparked a discussion about a history of beauty. This analysis is based on studies on masculinities and the methodology was built from the overlap between History and the Press.
Keywords:
History of Male Beauty; Body; Masculinity
Para Joana Maria Pedro, nossa querida orientadora de doutorado.
Corpos, cores, desejos, homens posando de cueca ou pelados para fotos, comentários de feedback dos apreciadores, volumes destacados na sunga, bundas dadas a ver, pênis flácidos e eretos em vários ângulos. Parte considerável do que se acabou de descrever poderia ser encontrado hoje no Instagram ou em aplicativos como o Grindr. Hashtags como “gay”, “gaybrasil”, “gayparty”, “gaylatino”, “gayamerica” permitem localizar uma série de homens, na sua grande maioria cis, que mostram ou têm suas fotos divulgadas nas redes sociais despertando delírios, admiração e desejo; elas são atravessadas pelos dispositivos de beleza da nossa sociedade.
Nos anos 1970, não havia Instagram, redes sociais e nem mesmo internet, mas, em vez disso, havia uma profusão de revistas que, vendidas em bancas ou por assinatura, constituíam um portal para conhecer outro mundo e, talvez, viver tórridas aventuras, ainda que apenas com a imaginação e a mão. Foi o caso da revista Rose, com circulação nacional entre 1979-1983; até onde se sabe, a primeira publicação brasileira de nus masculinos. Esta revista foi selecionada pois os autores, gays, cis e brancos, queriam entender quais tipos de corpos masculinos foram construídos como objeto de desejo sexual, especialmente na passagem dos anos 70-80 do século passado. Que corpos compunham o modelo de beleza naquela época? Que biotipo físico ostentavam? Qual o papel da revista Rose na produção e difusão desse padrão? Como o público leitor recebia tais imagens voyeuristas que despertavam seu deleite sexual? Todas as pessoas que consumiam tal produto o apreciavam ou havia críticas a essa estética fabricada como atrativa?
Esses questionamentos e análise inserem-se no período da Ditadura Civil-Militar brasileira, e cabe pontuar que, naqueles governos autoritários, houve uma intensa defesa da chamada “moral e os bons costumes” (Quinalha, 2021), ou seja, uma grande ênfase na família nuclear cristã que estaria sendo ameaçada pelas transformações culturais em voga. Tudo que não estivesse sintonizado com esse discurso era visto como subversivo e ameaçador da estrutura social vigente, sendo que essas pessoas foram perseguidas, censuradas, desumanizadas e tiveram suas vivências inferiorizadas. Isto por não reproduzirem as imposições cisheteronormativas tidas como a norma universal para ser seguida.
As sexualidades, expressões performativas de gênero e identidades dissidentes foram criticadas. Até mesmo a nudez era censurada para pessoas com mais de dezoito anos. Revistas nacionais que veiculavam pessoas nuas eram vigiadas; não podiam mostrar os órgãos sexuais, pois eram taxadas como pornográficas, imorais. Esses vestígios, por sua vez, nos auxiliam a compreender a dinâmica social a partir de outros temas que necessitam de maiores investigações, como os padrões de beleza masculinos, os biotipos físicos e os corpos fabricados como objeto do desejo sexual das pessoas, bem como a sua recepção pelo público consumidor. Tais fontes costumam ser ignoradas e não aceitas em determinados acervos e bibliotecas pelo preconceito em relação às fotografias veiculadas, como se tais periódicos não pudessem fornecer elementos para compreender o passado e, assim, devessem ser descartados. Além disso, poderiam abalar a imagem desses espaços, que priorizam documentos tradicionais. O mesmo pode ser dito em relação às pesquisas, que costumam priorizar outras fontes e deixar estas de lado, possivelmente em razão de algum tipo de constrangimento pelo teor da temática de estudo ou pela avaliação dos pares.
É com o intento de ir além das fontes documentais que fornecem indícios para compreender o período da Ditadura Civil-Militar, e avançar sobre as questões políticas que há muito obtêm a centralidade nessas investigações, que a proposta é analisar revistas eróticas que circularam naquele período e o seu papel na construção de corpos masculinos tornados objeto de desejo e prazer homoerótico naquela conjuntura. Parte-se da hipótese de que essa imprensa procurou, com suas limitações, produzir, reproduzir e vender um corpo que pudesse ser lido como belo, desejável, servindo de análise para compreender a história da beleza masculina no Brasil.
Considerando as indagações já expostas, foi realizado o trabalho de análise sobre a revista Rose, que era mais um dos produtos que a editora Grafipar comercializava. Tendo surgido nos anos 1960, no Paraná, a distribuidora de livros fundada pelo imigrante libanês Said Mohamad El Khatib posteriormente foi transformada em editora. Após juntar-se a uma gráfica, foi criada a Grafipar - Gráfica Editora Paraná Cultural Ltda. A empresa familiar contou, igualmente, com o trabalho dos seus dois filhos, Faissal El-Khatib e Faruk El-Khatib, sendo este último o editor da revista Rose (Khatib, 2018). O destaque das suas publicações se deu com a produção de histórias em quadrinhos (Danton, 2012) e também com a seleção de temáticas sexuais para divulgação entre leitores, nos anos 1970. Em meados dessa década, o seu título Quadrinhos eróticos fez tanto sucesso que chegou a vender 30 mil exemplares quinzenalmente (Gonçalo Junior, 2010).
Houve um personagem particularmente importante na história da editora, Nelson Faria Barros, jornalista experiente e leitor entusiasmado de assuntos como machismo, homossexualidades e preconceito sexual (Gonçalo Junior, 2010). Junto com Faruk El-Khatib, pensou na criação de uma revista masculina que trouxesse nus femininos. O resultado foi a publicação, em 1976, da revista Peteca, que também tocava em assuntos ligados às homossexualidades.
Certamente sensibilizada pelos questionamentos que o movimento feminista colocava à sociedade e pelas transformações nos costumes, como a chegada da pílula anticoncepcional, a lei do divórcio (Neckel, 2004) e a pauta de assuntos polêmicos, como o direito ao aborto, a equipe da Grafipar introduziu nas bancas a revista Rose. Tratava-se de uma publicação que prometeu informar as mulheres, mas que também lhes despertou desejos eróticos a partir das fotos de modelos despidos. Ainda assim, desde os seus primeiros números, debateu um vasto conjunto de temas sobre homossexualidades e noticiou informações importantes a esse público, a exemplo de atividades do movimento homossexual brasileiro, como era chamado à época.
A circulação de Rose foi um sucesso, mas as cartas do público leitor apontavam, em sua grande maioria, tratar-se de um público masculino. Diante disso, Faruk encomendou uma pesquisa junto às pessoas leitoras e descobriu que cerca de 90% era composta por pessoas homossexuais (Gonçalo Junior, 2010). O projeto foi readaptado. Mulheres que trabalhavam na publicação, como a poetisa Alice Ruiz, foram realocadas ou dispensadas, e o projeto foi entregue a Nelson Faria, que deveria conduzi-lo da melhor maneira.
Por ser uma revista de nus masculinos, sua produção era vigiada pela censura à imprensa, posto que a defesa da moral e dos bons costumes foi um dos valores intensamente defendidos no período da Ditadura Civil-Militar. Homens despidos totalmente, mostrando suas genitais, apareceram somente em edições posteriores, uma vez que havia o medo da represália da censura. Cabe diferenciar duas modalidades de censura na época, conforme sugere Carlos Fico (2002): a censura política e a censura moral. A primeira era mais visada, sobretudo, no que diz respeito à possível ameaça política, focalizando sua ação especialmente sobre jornais alternativos, de oposição e/ou críticos do governo; a segunda era mais voltada às questões morais. É preciso lembrar-se de que havia a Divisão de Censura das Diversões Públicas (DCDP), órgão que estava encarregado dessa modalidade de censura, em especial (Quinalha, 2020). Entretanto, isso não impediu os censores da imprensa de controlarem e cortarem tais temas das publicações caso aparecessem. Isso chama a atenção também para a singularidade do olhar de cada censor, haja vista as distintas possibilidades de interpretação das publicações e até mesmo o possível uso de estratégias por parte da equipe de redação/edição para tentar evitar o corte ou a apreensão do material (Martinelli, 2022, p. 229).
Em meio a esse cenário de censura, tornou-se necessário desenvolver manobras para fazer com que a revista Rose permanecesse no mercado de consumo e evitar a apreensão do material nas bancas. A primeira hipótese de trabalho é a masculinidade dos modelos, que pode ser lida como comum dos rapazes ou homens veiculados na revista, que não transgrediam os cânones das convenções para o gênero masculino. Em relação à questão moral, mostraram sujeitos despidos, mas não houve interação sexual em nenhum momento, nem entre homens, ou com mulheres, apenas fotos individuais que atiçavam o imaginário do público consumidor. O mesmo pode ser dito do órgão sexual, inicialmente mostrado flácido e, em outras, meio ereto ou ereto, o que reforçava a ideia de um “nu artístico”, não vulgar. Outra questão relevante foi o posicionamento político dos proprietários com os agentes do governo e da censura, que demonstravam não oferecer nenhum perigo à ordem política que insistentemente estava sendo protegida, tratando-se exclusivamente de empresários que apostavam num novo produto inofensivo. Ao mesmo tempo, a equipe de jornalistas ofereceu um conteúdo editorial mais adulto, científico, antenado com as transformações da época e os tempos de desbunde, sinalizando que tal revolução igualmente passava pelo corpo.
Mulheres portando uma revista erótico-educativa, como a entendia o editor chefe da revista Rose (Khatib, 2018), ou pornográfica, segundo interpretado por parte de um público popular, era algo intimidador, pois, se descoberto por familiares e/ou demais pessoas, poderia causar desconforto e “falação” sobre suas índoles. A linha que separa o que seria erótico do pornográfico é extremamente tênue e difícil de conceituar (Abreu, 2012). A estratégia mais viável seria adquiri-la e consumi-la no espaço íntimo, longe dos olhares moralistas de outrem.
O formato da revista ia ao encontro dos quesitos de discrição e da possibilidade de ser rapidamente escondida. Contava com 20cm de altura por 13,5cm de largura, equivalente à metade de uma folha de ofício tamanho A3, com cerca de 40 a 48 páginas. Isso facilitava seu manuseio, uma vez que podia ser colocada embaixo do travesseiro, dentro de um livro ou de uma revista de maior tamanho, entre as almofadas do sofá ou até mesmo na encanação - debaixo da pia do banheiro.
Quando o número 50 chegou às bancas, Rose tinha assumido uma perspectiva voltada para o público homossexual (Editorial, n. 50, [s.d.], p. 3). Essa ênfase também se percebe na capa, com a supressão do slogan que a acompanhou até então: “a revista que informa as mulheres e tira a roupa dos homens”.
Além do editorial, a partir da edição de número 50 constavam as seguintes seções: “Retalhos”, com divulgação de notícias envolvendo pessoas homossexuais; “Humor de Rose”, com charges; “Vitrine de Rose” (primeira seção de nus da edição), “Rose por dentro”, com informações culturais a exemplo de cinema, música e livros. Havia uma seção para conscientizar o público da relevância de discutir sexualidade, que se chamava “Informação Sexual”, que geralmente trazia entrevista com especialista no assunto; outras seções eram: “Horóscopo”; “Pôsteres”, nus masculinos em tons coloridos; “Contos eróticos”; “Histórias em quadrinhos” com teor erótico; concurso “Rose & Eles”; “Confidências” - comumente uma carta de leitor que era respondida pela sexóloga da revista Nina Fock, pseudônimo de Nelson Faria; “Encontro”, em que o público leitor de diversos locais se apresentava visando a atrair parceiros para fins de amizade e sexo e, por fim, “Cartas à redação”.
Para analisar os corpos construídos como objeto do desejo erótico no fim da década de 1970 e início da década de 1980 na revista Rose foram selecionadas as edições de número 50 até 81, totalizando-se 31 edições1. Isso se deve ao fato de que, nesse momento, o foco se direcionou ao público homossexual2, tido como apreciador de corpos masculinos e o principal consumidor. O recorte na fonte deu-se sobre as seguintes seções: “Capas”; “Editorial”; “Pôsteres” e “Cartas à redação”. Cabe destacar que edições esparsas da revista Rose também foram utilizadas para ampliar a análise.
QUAIS CORPOS MASCULINOS INCITAVAM O PRAZER DO PÚBLICO LEITOR DA REVISTA?
Os corpos estão além de uma materialidade física. Esses complexos pedaços de carnes se tornam signos culturais de elevado poder no decorrer da história. Se é verdade que existem nos cinco sentidos, igualmente é válido que existem por meio da narrativa, dos sentidos que lhes foram atribuídos ao longo da História. O historiador Georges Vigarello já alertava que o corpo não é um objeto unificado, mas sim múltiplo, e “pode representar dimensões bastantes diferentes da vida, tais como a sensibilidade, a expressão ou uma verdadeira mecânica ligada ao trabalho. Ele evoca numerosas imagens, sugere múltiplas possibilidades de conhecimento” (Vigarello; Santanna, 2000, p. 229).
Ao folhear as páginas da revista Rose, o público consumidor podia conhecer vários rapazes que posavam para a revista e admirar seus corpos, suas poses, suas poucas roupas, entregando-se a desejos eróticos.
Além dos vários assuntos que seriam abordados na edição de número 72, o público leitor pôde conhecer Fernando, que aparece nu em pelo; sobretudo seus membros superiores, posto que, na capa, não era comum mostrarem os órgãos genitais, mesmo com o afrouxamento da censura à imprensa no começo da década de 1980. Com 23 anos de idade e de Santa Catarina, o modelo de capa era formado como técnico em refrigeração, o que possibilitou que a editoria questionasse o público leitor de forma sarcástica, com vistas a seduzi-lo: “Tem alguém aí com a geladeira estragada?” (Editorial, n. 72, [s.d.], p. 3). Tanto as fotos de capa quanto as fotos internas, quatro no total, são coloridas. Olhando para elas é possível analisar as tecnologias de poder acionadas pela revista, pois, ao mesmo tempo em que diziam reproduzir o modelo de beleza daquela época (Cartas à redação, n. 22, 1980, p. 38), acabaram por produzi-lo e reforçá-lo para os consumidores. Num momento em que muitas pessoas sequer contavam com uma máquina de fotografar em casa, ter sua imagem veiculada nas páginas de um periódico talvez suscitasse admiração, encanto e afeição por parte dos leitores, sobretudo estando os modelos nus.
O cenário das fotos veiculadas nessa edição é um espaço público, a praia, supostamente uma mais deserta, e nelas Fernando aparece pelado com o pênis flácido. Cabe lembrar que a revista teve 81 edições e os órgãos sexuais somente passaram a ser mostrados nitidamente a partir da edição 35. Uma das exigências feitas pelas pessoas consumidoras da revista era de que o pênis fosse mostrado (Cartas à redação, n. 4, [s.d.], p. 38), questionando a demora em publicar os modelos totalmente despidos. Outras pessoas mais ousadas foram além e pediram para que fosse ereto (Cartas à redação, n. 29, [s.d.], p. 38), não apenas flácido. Isso levou a revista a posicionar-se, dizendo que era “anti-estético” [sic.], não fazia parte da proposta da revista, que era publicar “nus artísticos”, além de haver o “impedimento legal” (Cartas à redação, n. 54, [s.d.], p. 42).
Esse corpo, como os demais veiculados na revista, são diferentes dos divulgados na imprensa LGBTQIA+ e na mídia brasileira em geral na passagem do século XX para o XXI, quando emerge uma moralidade da boa forma, caracterizada por juventude, beleza, saúde, corpo malhado e depilado, fotografado em cenários que reforçam a virilidade: academia, praia, campo de futebol, carro (Silva; Souto Maior, 2022).
Dentre as posturas performadas por Fernando, em duas ele está sentado e na outra está em pé. Uma leitura rápida já permite identificar sua cor, branca, e os pelos no seu peitoral e na região genital, diferindo dos padrões de beleza da atualidade, com os pelos em excesso geralmente associados à falta de asseio pessoal e um estímulo à depilação de todo o corpo masculino.
Fernando encarou a câmera convidando o público leitor a consumir a revista, e seu semblante parece não se envergonhar de estar ali para expor a sua intimidade, pelo contrário, parece estar orgulhoso em ser capa da revista. Isto é sinal de uma significativa mudança que se operava no âmbito da história dos corpos nos anos 1970, confirmada pela presença crescente de publicações em que o corpo humano aparece como protagonista, e o desejo é uma ferramenta importante para a troca de prazeres.
Como uma revista voltada para o público que apreciava a nudez masculina, Rose atuou diretamente na elaboração de subjetividades e desejos no público homossexual. A partir da seleção realizada das fotos de rapazes enviadas à redação, ela se aproximou de um padrão de beleza da sua época, ajudando na sua própria construção, reforçando-o e o reafirmando. As escolhas editoriais são intencionais, são maneiras de intervir no espaço público, e, com isso, criar realidades.
Curiosamente, do modelo Fernando é possível saber somente a idade, a naturalidade e a profissão. Mais nada. Nenhuma outra informação. É como se o seu corpo bastasse. O corpo é tudo ou é o necessário para que se garanta alguns minutos de prazer numa masturbação ou prazer voyeurista. Isso ocorre porque Rose não fazia entrevistas com os modelos. Até onde se sabe, ela recebia essas imagens e as selecionava como achasse melhor. A revista criou um concurso de beleza, Rose & Eles, a partir da edição de número 16, do ano de 1980, que elegia os modelos mais bonitos e eles recebiam pela publicação de suas fotos (Lopes, 2011). Os escolhidos poderiam se tornar capa de uma edição. As fontes usadas não permitem afirmar se os modelos veiculados ou mesmo se outros rapazes foram contatados pela equipe da revista Rose para realizarem trabalhos, fotos e/ou projetos para a editora.
Ainda no número 72 podem ser vistas fotos de outros modelos, mas, coloridas, somente as de Fernando, 23 anos, e as de César, de 22 anos. Este apresentava pelos apenas na região genital e aparece pelado em todas as imagens; em uma, particularmente, parece estar com o pênis semiereto. Suas fotos foram produzidas no espaço privado; ao que parece, ele está em cima de uma cama. Na edição, há mais dois modelos, ambos com fotos em preto e branco e com o pênis ereto. Todos os quatro são magros, mas não malhados, são brancos ou pardos, dois têm pelos no peitoral e todos estão na faixa dos vinte anos de idade.
Na edição de número 74 era a vez de conhecer Hélio, gaúcho, “verdadeiro sol nos olhos verdes”, destacou Rose. Dele, além da capa, havia três fotos internas, sendo uma delas no formato pôster. Em todas o modelo apareceu deitado na cama, mostrando explicitamente seu corpo, peitoral e a região genital peluda. O pênis não estava ereto em nenhum dos cliques, mas em um deles presume-se estar relativamente excitado. Hélio é magro e não malhado, semelhante a Tião, de Sergipe, que também apareceu em fotos coloridas, um total de quatro, sendo que numa delas está em pé e nas demais fotos está deitado no sofá. As imagens de Tião foram igualmente produzidas no espaço privado. Fisicamente, ele é branco, corpo imberbe, com exceção da genitália, magro e não malhado. Ambos encararam a câmera, embora Tião parece nutrir um olhar tímido.
Na mesma edição Rose trouxe uma novidade: a seção “O homem do princípio ao fim”, slogan que parece dar uma ideia de completude aos corpos masculinos ali exibidos. Geralmente eram quatro fotos, as duas primeiras logo após a capa, um lugar editorial de destaque, e as outras duas no fim da revista. Para inaugurar a seção trouxeram Chico, de 23 anos, cuja participação chama a atenção, pois se trata de um homem preto3. Soma-se a isso um tipo físico magro, imberbe, com exceção da região genital, e sem ereção. Ele apareceu sentado em todas as fotos, sendo uma delas com as pernas abertas e a outra num ângulo mais ousado, quase deixando o ânus à mostra.
É notório que um homem preto seja escolhido para inaugurar a seção “O homem do princípio ao fim”, mas, ao atentar para o conjunto de nus masculinos selecionados para despertar prazer no público consumidor, é visível a escassa presença de corpos pretos. O modelo de beleza construído como belo, atrativo e propiciador de deleites eróticos tem cor e este é predominantemente branco, seguido por corpos bronzeados. Por que homens pretos não estão na capa? Por que a eles só é reservado o espaço interno da publicação? Por que, nessa seção especificamente, só apareceu mais um modelo preto?
A inclusão de Chico se deu, porém, não no lugar de maior destaque da revista, a capa. Em detrimento do relativo apagamento na Rose desses corpos, a imagem de Chico é iluminada por uma forte luz, uma ironia ou não do fotógrafo para tornar visível uma cor e um grupo de pessoas pouco presente. Para a equipe que produzia Rose, talvez os homens pretos fossem vistos como um grupo que não despertava o desejo da maioria do público consumidor da revista, embora houvesse pedidos nas cartas para vê-los, o que acabou contribuindo para que essa cor não fosse produzida como atrativa, desejável nessa época. Em outras palavras, corpos brancos foram eleitos e tiveram maior visibilidade e representatividade na Rose para despertar o desejo erótico do público consumidor. Eis a primeira foto Chico:
A Rose não foi a única publicação da época a trazer o desejado nu masculino, embora, como dito, tenha sido pioneira. A partir de 1978, passou a circular, com distribuição em todo o Brasil, o jornal Lampião da Esquina (1978-1981). Escrito por um grupo de editores que reunia jornalistas, professores universitários, intelectuais e militantes do então movimento homossexual que emergiu na época, Lampião colaborou para construir uma conscientização de identidade entre os homossexuais (Bandeira, 2006). Porém, nem tudo era militância e o jornal precisava vender, ou seja, atender aos pedidos do público. Não por acaso, trouxe, na edição de número 27, fotos de homens pelados. Nenhum deles estava na capa, mas uma chamada atraía a atenção do público: “Enfim, o nu frontal” (Finalmente, 1980, p. 7).
Folheando a edição encontra-se a matéria que traz três homens: Danton Jardim, o ator Antônio Moschio e o cantor Ney Matogrosso. Nenhum deles é preto, todos são aparentemente brancos (a cor em preto e branco da foto dificulta uma leitura mais precisa), possuem pelos no corpo e um deles é gordo. Aparentemente, as fotos foram retiradas do livro Homens, de Vânia Toledo (1980). Percebe-se, portanto, que a seleção do Lampião e da Rose obedece a certo pacto de branquitude que não só elege corpos para o prazer, não cria apenas visibilidades e dizibilidades em torno da cor da pele; as imagens produzem subjetividades e desejos nas pessoas.
As masculinidades negras, para Bell Hooks (2022), foram construídas como inferiores, sendo os homens pretos tidos como menos homens em comparação aos brancos e vistos como violentos e perigosos, tendo encarnada sobre si a suposta animalidade biológica do macho da espécie humana. Essas ideias corroboraram também a fetichização do corpo desses homens, pois é comum esperar deles um pênis avantajado, que traduz a expectativa de um desempenho sexual único (Silva Júnior; Caetano, 2018). Além disso, tal componente tornou-se símbolo da sociedade priápica contemporânea, na qual o tamanho do órgão sexual é fator de distinção social, sendo que até mesmo sob a flacidez coberta pelas roupas se espera dimensões salientes que atiçam o desejo de outrem.
A respeito do biotipo físico veiculado por meio dos modelos na revista Rose, outro exemplo que pode ser citado são alguns rapazes que apareceram no jornal Lampião da Esquina, em publicidades que visavam a aumentar a venda do periódico. Nessas ocasiões, os corpos visibilizados se aproximam daqueles vistos na Rose, ou seja, magros, delgados, imberbes, jovens; um biotipo físico que foi produzido como atraente naquele período e que tinha no corpo jovial com aparência de adolescente o objeto de desejo erótico masculino produzido por esses periódicos. O fragmento abaixo corrobora esse entendimento.
A sociedade privilegia algumas características para formar os indivíduos, e a beleza é uma delas. A baixa representação dos homens pretos vem dizer que aquele corpo pouco partilha do que é belo. Como diz Isildinha Nogueira, “a rede de significação atribui ao corpo negro a significância daquilo que é indesejável, inaceitável, por contraste com o corpo branco, parâmetro de autorrepresentação dos indivíduos” (Nogueira, 2021, p. 66). A ausência de modelos de cor preta pode refletir igualmente na inferioridade social desses homens.
Entre as edições de número 50 e 81, lendo as seções selecionadas para este artigo, calcula-se um total de 67 imagens de homens brancos, contra cinco de homens pretos - leia-se o cálculo com relação aos modelos e não à quantidade de vezes em que suas imagens apareceram. O gráfico abaixo ilustra aproximadamente essa proporção:
A porcentagem representada no gráfico acima indica como algumas masculinidades são colocadas em um lugar hegemônico frente a outras, as subalternizadas. No mundo ocidental, é o homem branco, heterossexual, burguês que ocupa um lugar de privilégio socialmente. Para Connell e Messerschmidt (2013, p. 245), a masculinidade hegemônica, apesar de poucos homens a possuírem, “certamente [...] é normativa. Ela incorpora a forma mais honrada de ser homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens”.
O fato de os homens se posicionarem em relação à masculinidade é, na realidade, uma resposta não apenas a um personagem, mas a uma instituição, práticas e projetos sociais que contribuem na construção da categoria gênero. É preciso olhar para esses discursos atentando para a sua própria construção, ou seja, narrativas sociais que passam por um processo de apagamento (Aragão, 2013), naturalizando-se socialmente, acessadas a todo momento, modelando subjetividades e criando pertencimentos.
A RECEPÇÃO DOS CORPOS MASCULINOS PELO PÚBLICO CONSUMIDOR
As imagens de nu masculino causaram furor entre os leitores e também leitoras. É digno de nota que nos oitocentos, na Europa, ocorreu algo semelhante: publicações passavam a despertar desejos. Inicialmente, a literatura romanesca estimulou o desejo por meio da descrição de corpos nus apelando à sensualidade. Mudanças maiores, porém, se deram com a incorporação das imagens e fotografias, tirando do texto e das gravuras os meios de difusão das obscenidades. Visitar obras de arte nos museus ou contemplá-las na sua própria casa, no caso das famílias aristocratas, estimulou o conhecimento do corpo e a descoberta da nudez. A fotografia, diz Alain Corbin, confere uma presença supervisível ao corpo desnudado, “exposto em toda a sua verdade” (2012, p. 215).
Nos anos 1970, no Brasil, temos algumas semelhanças. A editoria da Rose afirmou que os corpos veiculados compunham a tendência daquela época (Rose, n. 22, p. 38), contudo, além de mostrá-los, a revista também contribuiu na construção e/ou reforço desse modelo, na medida em que subjetividades, desejos, corpos e prazeres estavam sendo fabricados. Se, por um lado, isso é representativo de um biotipo físico tido como atrativo no fim da década de 1970 e início dos anos de 1980, por outro lado não significa que o público consumidor da Rose era unânime na assimilação de tais modelos, haja vista que algumas pessoas fizeram questão de escrever à revista e demonstrar sua crítica a esse modelo de beleza.
A circularidade da revista e as distintas formas de recepção de tais corpos pelo público consumidor eram mistas. Flávio, de Curitiba, no Paraná, destacou: “[...] Quanto aos modelos que vocês selecionam, são da mais perfeita linhagem; não tenho palavras para agradecer” (Cartas à redação, n. 52, [s.d.], p. 42). Paulo Tasio, de Guarulhos, São Paulo, tinha opinião semelhante: “À direção da revista Rose, eu a parabenizo pela exclusividade em valorizar o sexo masculino, enquanto outras, até agora, só exibem a beleza feminina [...]” (Cartas à redação, n. 57, [s.d.], p. 42).
Rose atuava colocando nas ruas um debate até então proibido, o desejo homossexual, incitado nas imagens divulgadas a cada edição. À época da sua emergência, a imprensa nutria consideráveis preconceitos contra o público homossexual. Exemplo disso foi a revista EleEla, que circulou entre os anos 1960-1970, e se dizia voltada ao “casal moderno”, heterossexual. Abordou temas como feminismo, contracultura e fim do casamento, mas reproduziu referências às homossexualidades como doença, desvio, aberração, visão comum aos periódicos da época (Monteiro, 2013).
Talvez esse movimento mais amplo possa explicar o sucesso da Rose, com páginas capazes de despertar o prazer com as próprias mãos. O furor de alguns para com os modelos da revista era explícito em algumas cartas, sinalizando o desejo urgente de contatá-los. Tal apreço tinha, possivelmente, finalidades eróticas. Laércio Costa, de Campina Grande, na Paraíba, teria escrito à Rose: “Sendo leitor assíduo desta revista, gostaria, se possível, [de] entrar em contato urgente, com o incrível Lauro Jorge, gaúcho de Porto Alegre, modelaço premiado no Concurso Rose & Eles” (Cartas à redação, n. 50, [s.d.], p. 42). Antes do pedido, Laércio destacou ser um consumidor frequente da revista, o que já alertava a editoria a atentar à sua solicitação, já que se tratava de um cliente antigo. Mas não só isso. Havia pressa em comunicar-se com o modelo gaúcho, pois era um “modelaço”, conforme o autor, ou seja, alguém em quem valia a pena insistir pelo contato e investir num eventual romance. Pesquisas recentes mostram que pessoas homossexuais eram tratadas preconceituosamente na sociedade campinense da época, seja na imprensa, seja entre a população local (Souto Maior; Oliveira, 2023).
Não foram poucos os casos que solicitavam o contato de modelos, e a editoria deixava seus clientes cientes de que não passaria contato algum. Entretanto, alguns leitores persistiam solicitando e, por vezes, a resposta dada era áspera: “Como já falamos e explicamos dezenas de vezes nesta e nas outras publicações, não custa repetir. Não fornecemos endereços de nossos modelos, pois não temos autorização para tanto”. Aventando que tal interesse poderia ser para fins afetivo-sexuais, endossavam: “Uma dica para fazer um eventual contato com os mesmos é mandar anúncios para as diversas seções de encontro guei das inúmeras revistas desta Editora [...]” (Cartas à redação, n. 50, [s.d.], p. 42).
Cabe destacar que era comum observar o uso do neologismo “guei” na revista, ou seja, uma forma aportuguesada para a palavra gay. Embora, em alguns momentos, tenha sido usada até mesmo como título de seções na revista, como Gay Corner e “Encontro Gay”, no texto tendia a aparecer de modo a não imitar o estrangeirismo. Tal registro podia ser decorrente da intenção de expressarem os desejos homoeróticos por meio de uma terminologia nativa, distanciando-se da usada pelos movimentos homossexuais nos Estados Unidos.
Situação semelhante ocorreu no jornal Lampião da Esquina, que era contemporâneo de Rose. É possível que leitores homossexuais também consumissem o jornal e fossem adeptos desse entendimento ou até mesmo os editores da revista Rose, para inteirarem-se do tema, passaram a reproduzir tal expressão. Cabe destacar que o Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, primeiro grupo ativista no Brasil a ser efetivado, em 1978, tinha conhecimento dessa revista e, inclusive, já havia trocado correspondências com a sua editoria (Cartas à redação, n. 65, [s.d.], p. 42).
Percebe-se como, nos anos 1970, as fronteiras entre público e privado, paulatinamente, se confundiam. Rose colocou algo duplamente transgressor nas bancas de revista, o nu masculino e a possibilidade de desejo homossexual. Folhear aquelas páginas e ler as cartas de leitores é se deparar com a reivindicação por viver a sexualidade, ainda que a sós, com a masturbação incitada pelas fotos dos modelos. Naquele momento, como mostrou Roselane Neckel (2004), um conjunto de revistas de “comportamento”, endereçadas para homens e mulheres, a exemplo da EleEla, Homem, Playboy, Nova e Cláudia, tratava de questões relacionadas à vida emocional e sexual dos indivíduos. Rose, nesse contexto, se tornava também relevante para a felicidade pessoal.
Por mais que a revista Rose tenha assumido um viés especialmente voltado para consumidores homossexuais, quaisquer pessoas interessadas podiam adquiri-la, de modo que, assim como homossexuais já eram clientes antes dessa alteração editorial, algumas mulheres permaneceram adquirindo-a. Maria, de Goiânia, manifestou sua crítica:
Venho pedir-lhes que vocês selecionem mais ou melhor seus modelos, pois os números 40 e 41 foram péssimos, fiquei extremamente chocada com os modelos; acho que eles devem ser mais desinibidos, mais velhos e extravagantes, porque esses que estão sendo publicados até parecem virgens (Cartas à redação, n. 51, [s.d.], p. 42).
O comentário de Maria reportava-se a edições anteriores à mudança de viés assumida pela revista, mas o biotipo físico dos modelos permaneceu o mesmo, sendo que as cartas podiam ser publicadas de forma retroativa. Os rapazes que apareceram na Rose foram considerados demasiadamente jovens, de modo que a crítica aventou a hipótese de serem inexperientes sexuais, sugerindo modelos aparentemente mais velhos para apreciar. A jovialidade dos rapazes foi interpretada como uma masculinidade transitória, ou seja, a construção social e cultural do sujeito masculino deve ser concomitante com a maturação biológica de suas carnes sexuadas. Nesse sentido, Arnaud Baubérot (2013) pontuou que a construção viril do “macho”, tanto a cisgeneridade quanto a fabricação do corpo masculino, são convergentes para propiciar os desejos eróticos.
Semelhante crítica da leitora foi feita por outra pessoa, cujas iniciais foram abreviadas na carta. Tratava-se de A. M. Brito, do Rio de Janeiro. Esta pessoa elogiou a revista pelo trabalho realizado e deixou sugestões:
[...] quanto às fotos que saem nas páginas centrais, seria ótimo se vocês retratassem homens mais maduros (na faixa dos 30 anos). Homens de aparência mais máscula (de bigode ou com bigode e barba). Seria bom também que vocês variassem os lugares onde tiram as fotos. Saiam do estúdio e vão fazer ao ar livre, junto à natureza, ou procurem lugares fechados, mas onde se possa fazer uma variedade muito grande de novas e excitantes poses. Gosto muito de Rose e estou fazendo estas sugestões não por achar que a revista não esteja boa; muito pelo contrário. Só que com algumas variações ela ficaria ainda melhor. [...] (Cartas à redação, n. 63, [s.d.], p. 42).
Tais apontamentos ressaltam o biotipo veiculado e produzido como desejável na revista, porém, algumas pessoas possuíam outras preferências e sugeriam incorporar mais modelos que mostrassem os signos de masculinidade visíveis nos seus corpos, tais como barba, pelos, bigode. Esses componentes, por sua vez, especialmente os dois últimos, diferem no ideal de beleza masculino contemporâneo. Tê-los, por si só, não é representativo de um corpo masculino sem que outros elementos estejam presentes. Na época, os componentes citados na crítica realçariam a virilidade de seus detentores e, por conseguinte, aumentariam a atração afetivo-sexual de parcela do público consumidor. Cabe destacar que algumas pessoas compravam a revista Rose para lê-la e apreciar os corpos masculinos veiculados, no entanto, outras compravam especialmente para visualizar os modelos, como pontuou Valquíria, de Campinas, São Paulo (Cartas à redação, n. 53, [s.d.], p. 42).
A partir dos relatos narrados nas epístolas enviadas à revista, a masculinidade hegemônica era requisitada, ou seja, aquela em que seus portadores ostentassem virilidade e outros atributos que compõem o estereótipo masculino naturalizado, possuindo características tidas como espontâneas para um homem, embora Connell (1995; 2003) e outras pessoas pesquisadoras já tenham alertado que se trata de uma construção cultural. Entretanto, no afã de conquistar esse componente de prestígio que é a masculinidade hegemônica, muitos rapazes e homens tornam-se reféns dessa forma de opressão, que, por sua vez, acaba contribuindo na formação de masculinidades subalternas (Kimmel, 1998). Essas masculinidades outras são resultado da tentativa de alcançar aquela tida como hierarquicamente superior, ou seja, se dão de maneira simultânea; não existe apenas uma masculinidade hegemônica e esta é mais utópica do que tangível.
As cartas enviadas à redação da revista Rose pelas pessoas consumidoras devem ser analisadas segundo as peculiaridades que este tipo de fonte apresenta, como chamou a atenção Martinelli (2022), uma vez que há a possibilidade de as cartas enviadas pelas pessoas não corresponderem exatamente àquelas enviadas pelo público leitor, de terem sido inventadas, bem como de se considerarem as seleções internas que a própria editoria realizava ao decidir quais cartas seriam ou não publicadas. Cientes dessas possibilidades focaliza-se aquilo que, de fato, foi escrito e publicado, vestígio que chegou até o público leitor e auxilia a compreensão daquela conjuntura, sobretudo no que diz respeito à estética masculina produzida e difundida como atrativa e desejável.
Como já foi dito, alguns consumidores solicitaram a presença de mais homens “de cor”, como atestam várias evidências, e essa palavra era usada na época em referência a pessoas não brancas (Martinelli, 2023). A representatividade dessas pessoas na revista Rose, todavia, foi muito pequena. Por outro lado, o biotipo físico e estético “de cor” não só era apreciado, como atestam os pedidos para os verem, como também foram elogiados. Marcos Feliz, de São Paulo, fez questão de destacar esse apreço: “Quero dar meus parabéns pelo belo morenaço que é o Eddinho, publicado em Rose n. 49. Este sim, valeu a pena, pois é um garoto de deixar a gente pirado” (Cartas à redação, n. 53, [s.d.], p. 42). Contudo, a presença de sujeitos pretos foi ínfima na revista Rose, na construção dos corpos masculinos desejáveis no final da década de 1970 e início da década de 1980.
Daniel Welzer-Lang (2001) ajuda a entender esse processo de tornar-se homem, masculino e viril, pois, conforme reitera o autor, é aí que se produzem as masculinidades. No entanto, esse status quo gera não apenas a inferiorização das feminilidades, mas também relações entre os próprios sujeitos, como entre adultos e jovens, brancos e pretos, heterossexuais e homossexuais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos corpos masculinos veiculados na revista Rose a partir do momento em que a revista assumiu um projeto editorial voltado ao público homossexual, em especial, evidenciou que foram divulgadas fotos de rapazes e/ou homens que incitavam desejos eróticos sobre suas carnes masculinizadas. Da mesma forma, transformaram as subjetividades do público consumidor, produzindo, mediante o enaltecimento dos biotipos veiculados, modelos de beleza masculinos atrativos, entre o fim da década de 1970 e o início da seguinte. Eles eram, em sua maioria, compostos por sujeitos brancos, com uma corporalidade e aparência de adolescentes, imberbes, delgados, com poucos pelos.
Esse padrão já era apresentado desde as primeiras edições da revista, no entanto, assemelhava-se a outras imagens publicadas por periódicos homossexuais da mesma época, como o jornal Lampião da Esquina, apostando no arquétipo que se poderia chamar de efebo. Há de se considerar que a revista não apenas tornou público um padrão vigente, como também o construiu, reforçou e difundiu. Assim, modelou subjetividades, atuou diretamente na construção de sujeitos que eventualmente buscaram se assemelhar ou desejar indivíduos parecidos com os que apareceram retratados na publicação.
As imagens analisadas sinalizaram que os sujeitos brancos ou bronzeados foram os mais veiculados na revista, em contraponto à pouca visibilidade de sujeitos pretos. O fato de a porcentagem de brancos ter sido maior induz à construção e à reprodução desses corpos como mais belos, atraentes, produzidos como objeto do desejo erótico, ao passo que os corpos pretos ocuparam um lugar de inferioridade na sua produção enquanto objeto de desejo.
O público consumidor recebeu tais modelos, apreciou, elogiou, pediu o seu contato, mas também sugeriu outros biotipos físicos, mais másculos, viris, com pelos, embora alguns tenham sido veiculados, além de modelos “de cor”. Partes do corpo também eram enaltecidas ou requisitadas em outros formatos, como o pênis ereto, mais à mostra. O corpo masculino não era apenas um deleite voyeurista, era um produto de consumo, um objeto de prazer e satisfação, uma válvula de escape para deixar o tesão e a libido aflorarem, especialmente no espaço privado, no quarto ou banheiro. Era o início da objetificação do corpo masculino da contemporaneidade que ocorria, paradoxalmente, em meio às ideias de reforço à moral e aos bons costumes defendidas pela Ditadura Civil-Militar.
Por fim, espera-se que este texto possa servir de inspiração para que pesquisadores e pesquisadoras possam se aventurar pelo estudo das sexualidades dissidentes da cisheteronormatividade na historiografia brasileira e, mais precisamente, aventurar-se na análise e no estudo de outras temáticas dentro do período ditatorial. Entende-se, também, que uma história dos corpos, dos desejos, do que é produzido como belo e desejável pode ajudar a compreender gramáticas afetivas, formativas, sociais e culturais de um determinado período histórico, demonstrando construções que atravessam nossos corpos, nossas sensibilidades, nosso olhar, afetos, sensualidades e prazeres eróticos carnais.
REFERÊNCIAS
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1
Cabe destacar que, desse total, a edição de número 69 não foi acessada, logo, não faz parte desta análise.
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2
Na época, a palavra homossexual era usada de maneira ampla em referência a gays, lésbicas, travestis, transexuais, sendo que as divisões internas se tornariam mais visíveis a partir da década de 1990, com o uso da sigla GLT pelo ativismo homossexual.
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3
Foi utilizada a expressão “homem preto” em referência à cor da pele, sendo a palavra negro especialmente empregada ao tratar da identidade, salvo quando a fonte ou uma citação utilizá-la. Nesses casos, foi mantida a palavra original.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Fev 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
29 Fev 2024 -
Aceito
28 Nov 2024